sábado, 21 de maio de 2016

O Evangelho Secreto de Marcos (Parte 03)

A Crucificação

Como testemunham os feitos de Ghandi, um líder espiritual com suporte popular suficiente pode representar uma ameaça a um regime. Mas um homem casado, com uma pretensão legítima ao trono e filhos através dos quais estabeleceria uma dinastia, é uma ameaça de natureza decididamente mais séria. Existe nos Evangelhos alguma evidência de que Jesus tenha sido considerado pelos romanos uma ameaça desse tipo?
Durante sua entrevista com Pilatos, Jesus é repetidamente chamado "rei dos judeus". Seguindo-se instruções de Pilatos, uma inscrição com este título é também afixada na cruz. Como argumenta o professor S.G.F. Brandon, da Universidade de Manchester, a inscrição afixada na cruz deve ser considerada genuína - tanto quanto qualquer coisa do Novo Testamento. Em primeiro lugar ela figura, sem nenhuma variação, nos quatro Evangelhos. Em segundo lugar, trata-se de um episódio muito comprometedor, muito embaraçoso, para ter sido inventado por editores posteriores.
No Evangelho de Marcos, Pilatos, após interrogar Jesus, pergunta aos seus dignitários reunidos (Marcos 15:12): "Pois que quereis que eu faça ao rei dos judeus?" Isto indicaria que pelo menos alguns judeus realmente se referiam a Jesus como seu rei. Ao mesmo tempo, Pilatos confere este título a Jesus em todos os quatro Evangelhos. Não há razão para supor que ele o faz de forma irônica ou pejorativa. No quarto Evangelho ele insiste nisso de forma bastante séria e reiterada, a despeito de um coro de protestos. Além disso, nos três
Evangelhos sinópticos, o próprio Jesus reconhece sua pretensão ao título (Marcos 15:2): "E Pilatos lhe perguntou: 'Tu és o rei dos judeus?'
E ele, respondendo, lhe disse: 'Tu o dizes.''' Na tradução, esta resposta pode soar ambivalente, e talvez isso se dê de forma deliberada. No original grego, no entanto, seu significado é inequívoco. Ela só pode ser interpretada como: "Tu falastes corretamente." E assim a frase é interpretada onde quer que apareça na Bíblia.
Os Evangelhos foram compostos durante e após a rebelião de 68-74 d.C., quando o judaísmo tinha efetivamente cessado de existir como uma força social, política e militar organizada. Além disso, eles foram compostos para uma audiência greco-romana, para a qual tinham que ser tornados palatáveis. Roma estivera recém-envolvida numa guerra amarga e custosa contra os judeus. Em conseqüência, era perfeitamente natural colocar os judeus no papel de vilões. Além disso, no irromper da rebelião judia, Jesus não poderia de maneira alguma ser retratado como uma figura política, de algum modo relacionada à agitação que culminou na guerra. Finalmente, o papel dos romanos no julgamento e execução de Jesus deveria ser limpado e apresentado da forma mais simpática possível. Assim, Pilatos é descrito nos Evangelhos como um homem responsável e tolerante, que reluta em consentir a crucificação. Mas, a despeito dessas liberdades tomadas em relação à história, a verdadeira posição de
Roma no assunto pode ser discernida.
De acordo com os Evangelhos, Jesus é inicialmente condenado pelo Sanhedrin - o conselho dos anciãos judeus -, que então o leva até Pilatos e pede ao procurador que se pronuncie contra ele.
Historicamente isto não faz sentido. Nos três Evangelhos sinópticos, Jesus é preso e condenado pelo Sanhedrin na noite do festival dos judeus, mas pela lei judaica este conselho era proibido de se reunir durante o festival. Nos Evangelhos, a prisão e o julgamento de Jesus ocorrem à noite, antes do conselho. Pela lei judaica o conselho é proibido de se reunir à noite, em casas particulares ou em qualquer outro lugar fora dos recintos do Templo. Nos Evangelhos, o conselho é aparentemente desautorizado a votar uma sentença de morte – e esta teria sido a razão evidente para levar Jesus até Pilatos. Contudo, o conselho era na realidade autorizado a votar sentenças de morte - por apedrejamento, se não por crucificação. Desta forma, se o conselho tivesse desejado dispor de Jesus, ele teria autoridade para sentenciá-lo à morte por apedrejamento. Não haveria de nenhum modo necessidade de perturbar Pilatos.
Existem numerosas outras tentativas, por parte dos autores dos Evangelhos, de eximir Roma de culpa e responsabilidade. Uma delas é a disposição, demonstrada por Pilatos, de libertar o prisioneiro se a multidão assim o quisesse. De acordo com os Evangelhos de Marcos e de Mateus, este era um "costume do festival dos judeus".
Isso é fantasioso. Autoridades modernas concordam em que tal política nunca existiu por parte dos romanos, e que a oferta para libertar Jesus ou Barrabás é pura ficção. A relutância de Pilatos em condenar Jesus e sua submissão amuada à pressão tumultuada do povo seriam igualmente fictícias. Na realidade, seria impensável que um procurador romano - e um procurador tão desalmado como Pilatos - se curvasse à pressão do povo. Novamente, o objetivo de tal fantasia é bastante claro: aliviar os romanos, transferir a culpa para os judeus, e assim tornar Jesus aceitável a uma audiência romana.
É possível, é claro, que nem todos os judeus sejam inocentes. Mesmo que a administração romana temesse um rei-sacerdote com pretensões ao trono, ela não teria condições de embarcar abertamente em atos de provocação, que poderiam precipitar uma rebelião em escala total. Certamente, seria mais conveniente para Roma se o rei-sacerdote fosse ostensivamente traído por seu próprio povo. Assim, é concebível que os romanos tenham empregado alguns saduceus como agentes provocadores. Mas mesmo que este seja o caso, permanece o fato de que Jesus foi vítima de uma administração romana, uma corte romana, uma sentença romana, soldados romanos e execução romana - uma execução que, na forma, era reservada exclusivamente aos inimigos de Roma. Jesus não foi crucificado por crimes contra o judaísmo, mas por crimes contra o império.

Nenhum comentário:

Postar um comentário