sábado, 21 de maio de 2016

A Lenda dos Merovíngios (Parte 06)

Clóvis e seu Pacto com a Igreja

O mais famoso de todos os governantes merovíngios foi o neto de Mérovée, Clóvis I, que reinou entre 481 e 511. Seu nome é conhecido de todos os estudantes franceses, pois foi sob Clóvis que os francos se converteram ao cristianismo romano. E foi através dele que Roma começou a estabelecer na Europa Ocidental uma supremacia que não foi desafiada durante mil anos.
Por volta de 496, a Igreja Romana estava em situação precária. Ao longo do século V, sua própria existência tinha sido severamente ameaçada. Entre 384 e 399, o bispo de Roma já tinha começado a se denominar papa, mas sua condição oficial não era maior do que a de qualquer outro bispo, e bem diferente da do papa atual. Ele não era, em nenhum sentido, o líder espiritual ou a cabeça suprema da cristandade. Representava apenas um conjunto de interesses velados, uma das muitas formas divergentes de cristianismo, que lutava desesperadamente pela sobrevivência, contra uma variedade de cismas e pontos de vista teológicos conflitantes. Oficialmente, a Igreja Romana não possuía maior autoridade do que, digamos, a Igreja Celta, com a qual estava em atrito permanente. Sua autoridade não era maior do que a de heresias, como o arianismo, que negava a divindade de Jesus e insistia em sua humanidade. Durante a maior parte do século V, os bispados da Europa Ocidental ou eram arianos ou estavam vagos.
Se a Igreja Romana quisesse sobreviver e, além disso, exercer sua autoridade, ela necessitaria do apoio de um campeão, uma poderosa figura secular que pudesse representá-la. Para que a cristandade evoluísse de acordo com a doutrina romana, esta doutrina deveria ser disseminada, implementada e imposta por força secular - uma força suficientemente poderosa para enfrentar e finalmente extirpar o desafio dos credos cristãos rivais. Não é de se surpreender, então, que a Igreja Romana, em seu momento de necessidade mais aguda, procurasse Clóvis.
Por volta de 486, Clóvis tinha aumentado significativamente a extensão dos domínios merovíngios, lançando-se de Ardenas para anexar vários reinos e principados adjacentes, vencendo várias tribos rivais. Como resultado, muitas cidades importantes - Troyes, por exemplo, Rheims e Amiens - foram incorporadas ao reino. Em uma década, tornou-se claro que Clóvis estava a caminho de se tornar o chefe mais poderoso da Europa Ocidental.
A conversão e o batismo de Clóvis revelaram-se de importância crucial em nossa investigação. Uma narrativa do acontecimento foi compilada, em todos os detalhes, mais ou menos na época em que ele ocorreu. Dois séculos e meio mais tarde, esta narrativa, chamada A vida de São Rémy, foi destruída, exceto por umas poucas páginas manuscritas avulsas. E as evidências sugerem que ela foi destruída deliberadamente. Apesar disso, os fragmentos restantes testemunham a importância do que estava envolvido ali.
Segundo a tradição, a conversão de Clóvis foi súbita e inesperada, efetuada por sua esposa, Clotilde, ardente devota de Roma, que teria importunado seu marido até que ele aceitasse sua fé, tendo sido canonizada depois por seus esforços. Nesses esforços, ela teria sido guiada e assistida por seu confessor, São Rémy. Mas por trás dessas tradições repousa uma realidade histórica muito prática e mundana.
Quando Clóvis se converteu ao cristianismo romano e tornou-se o primeiro rei dos francos, ele tinha mais a ganhar do que a aprovação de sua mulher. Estava em jogo um reino mais tangível e substancial que o reino dos céus.
Sabe-se que, em 496, várias reuniões secretas ocorreram entre Clóvis e São Rémy. Imediatamente depois, estabeleceu-se um acordo entre Clóvis e a Igreja Romana. Para esta, foi um triunfo político importante, que asseguraria a sobrevivência da Igreja, estabelecendo-a como a suprema autoridade espiritual no Ocidente. Ele consolidou a condição de Roma como igual à da fé ortodoxa grega, baseada em Constantinopla; ofereceu uma perspectiva de hegemonia romana e meios efetivos de erradicar as cabeças de hidra da heresia. E Clóvis representava os meios de implementar estas coisas: a espada da Igreja, o instrumento pelo qual Roma imporia sua dominação espiritual, o braço secular e a manifestação palpável do poder romano.
Em troca, Clóvis receberia o título de Novus Constantinus. Em outras palavras, presidiria um império unificado - o Sacro Império Romano -, projetado para suceder àquele supostamente criado sob Constantino e destruído pouco tempo depois por visigodos e vândalos. Segundo um especialista moderno do período, Clóvis, antes de seu batismo, foi
"fortificado (. . .) com visões de um império que sucederia ao de Roma, que seria a herança da raça merovíngia".
De acordo com outro escritor moderno, "Clóvis deve agora tornar-se um rei do império ocidental, um patriarca dos alemães ocidentais, reinando, embora não governando, sobre todos os povos e reis".
O pacto entre Clóvis e a Igreja Romana, em suma, trouxe sérias conseqüências para a cristandade - não somente a daquele tempo, mas também a do milênio seguinte. O batismo de Clóvis marcaria o nascimento de um novo império romano, um império cristão, baseado na Igreja Romana e administrado, no nível secular, pela linhagem merovíngia. Um laço indissolúvel foi estabelecido entre e Estado, cada um devendo fidelidade ao outro, cada um se ligando perpetuamente ao outro. Para ratificar este laço, Clóvis, em 496, deixou-se batizar formalmente por São Rémy em Rheims. No clímax da cerimônia, São Remy pronunciou suas famosas palavras:

Mitis depone colla, Sicamber, adora quod incendisti, incendi quod adorasti. *
* Inclinai vossa cabeça humildemente, sicambriano, reverenciai o que haveis queimado e queimai o que haveis reverenciado.

É importante observar que, ao contrário do que historiadores às vezes sugerem, o batismo de Clóvis não foi uma coroação. A Igreja não fez de Clóvis um rei. Ele já o era, e tudo o que a Igreja podia fazer era reconhecê-lo como tal. Ao fazê-lo, a Igreja se ligava oficialmente não só a Clóvis, mas a uma linhagem. Neste ponto, o pacto se assemelhava àquele selado, segundo o Velho Testamento, entre Deus e o rei Davi - um pacto que pode ser modificado, como no caso de Salomão, mas não revogado, quebrado ou traído. E os merovíngios não perderam de vista o paralelo.
Durante os anos restantes de sua vida, Clóvis percebeu perfeitamente as ambiciosas expectativas de Roma em relação a ele. Com irresistível eficiência, a fé foi imposta pela espada; e com a sanção e o mandato espiritual da Igreja, o reino franco expandiu-se para o leste e o sul, englobando a maior parte da França e da Alemanha atuais.
Entre os numerosos adversários de Clóvis, os mais importantes foram os visigodos, que aderiram à cristandade ariana. Foi contra o império dos visigodos - que dominava os Pirineus e se estendia pelo norte até Tolouse - que Clóvis dirigiu suas mais assíduas e organizadas campanhas. Em 507 ele derrotou definitivamente os visigodos na Batalha de Vouillé. Logo depois, Aquitânia e Toulouse caíram em mãos francas. O império visigodo ao norte dos Pirineus caiu efetivamente antes do ataque franco. De Toulouse, os visigodos retiraram-se para Carcassonne. Expulsos de Carcassonne, estabeleceram sua capital, e último bastião, na região de Razès, em Rhédae - hoje cidade de Rennes-le-Château.

Nenhum comentário:

Postar um comentário