terça-feira, 31 de maio de 2016

A Destruição de Sodoma

Em algum lugar ao sul do mar Morto, cerca de quatro mil anos antes de Cristo.

O que vem a seguir aconteceu seis mil anos depois do dilúvio e imediatamente após a expulsão da irmandade dos Renegados dos Sete Céus.
Seguiu-se a revolta um sentimento estranho, de desconfiança geral dos anjos em relação ao arcanjo Miguel. Por isso ele, que já havia decidido devastar Sodoma, bem como outras cidades da planície, decidiu, para forjar a imagem de justo, repetir o que fizera no dilúvio e permitir que dois anjos fossem a terra verificar se na cidade condenada havia humanos bondosos. Se houvesse, seriam poupados. Para reforçar ainda mais sua "boa vontade", excluiu da tarefa o representante dos hashmalins, uma casta de anjos tida como perversos, que controla a Gehenna.
Foram enviados a Haled (plano físico - dos humanos) um ofanim e um querubim -- um anjo da guarda e um anjo guerreiro. Esses dois celestes chegaram a Sodoma em uma tarde de maio, para cumprir sua missão. Ora, os sodomitas eram um povo justo. comum, como todos os outros, mas tinham governantes implacáveis. Um reduzido número de homens governava a cidade, e seus pecados eram tremendos. A terra de Sodoma era extremamente rica, mas, em vez de seus líderes compartilharem os frutos, fomentavam a ganância.
Os soberanos tinham incrível repúdio por estrangeiros, que julgavam querer tomar o seu ouro. Mesmo a cidade estando segura contra ataques, seus juízes votaram uma lei pela qual todo habitante que fosse flagrado alimentando forasteiros seria jogado a fogueira. Os viajantes que ali chegavam por engano eram torturados em camas que lhe esticavam os membros até se partirem. Certa vez, uma jovem ofereceu água a um andarilho. Sabendo desse ato criminoso, os chefes a untaram com mel e a puseram diante de uma colmeia de abelhas selvagens. Mas os trabalhadores livres, os servos e os escravos, que representavam o grosso do povo, eram pobres de bens e fracos de mente, e sofriam horrores nas mãos dos senhores maldosos.
Aconteceu, então, que um tal de Ló, que descansava nos portões de Sodoma, avistou os dois anjos em forma de homem e os confundiu com viajantes. Ló não era um rico privilegiado, mas um trabalhador honesto. Mesmo sabendo das leis, teve pena daqueles forasteiros e os chamou a sua casa, oferendo-lhes pão e abrigo. A noitem os guardas dos juízes estavam a sua porta, armados com estacas de bronze. Queriam prender e matar os visitantes, mas o querubim os cegou. Os celestes deixaram o local, não sem antes avisar Ló: -Deve pegar sua mulher e filhas e partir e Sodoma, pois somos anjos de Deus e lhe dizemos que, quando o dia raiar, a cidade será destruída. Corra para além das montanhas e não olhe para trás.
Antes do nascer do sol, portanto, o mortal deixou a planície e se escondeu nas colinas. E foi cumprida a vontade dos arcanjos.
O Anjo Destruidor era o preferido de Lúcifer, mas também era um admirável agente de Miguel, o primeiro a ser convocado para liderar aquelas carnificinas dantescas.
A legião perderia tempo demais atacando cidade por cidade da planície. Mas Apollyon tinha outros planos para findar aquela campanha. Guardava consigo um segredo, uma divindade terrível, destrutiva e voraz. Não podia usá-la sempre, porque a execução do poder o deixava exausto e vulnerável aos inimigos. Ali, porém, estava só, seguro, e faria o desejo dos arcanjos, que era igualmente o seu.
Concentrou-se, por fim, e traçou um circulo no chão de areia. Respirou fundo e focou toda a energia de sua aura em seu próprio avatar, o Destruidor liberou toda a força contida, e aquele alento se converteu em uma explosão de luz e calor de potência titânica, jamais vista naquelas terras do sul.
Uma onde de fogo e fulgor varreu a planície, exterminando Sodoma, Gomorra e outra cidades da planície. A fumaça elevou-se a altura das nuvens, como a de uma grande fornalha, e de longe os outros anjos assistiram boquiabertos ao espetáculo.
De Sodoma e Gomorra restou apenas a lembrança, perpetuadas pelas filhas de Ló, a única família a sobreviver aquele horror inumano.
Quando o vapor negro baixou, Apollyon estava esticado no chão, fatigado, dentro do circulo de areia delimitado por ele, o único ponto em quilômetros a resistir aos efeitos da devastação.

Os Duques do Inferno

Os nove duques do inferno são: Asmodeus, Molloch, Mephistopheles, Alastor, Mammon, Orion, Apollyon, Baalzebul e Bael, os seres de maior influência na hierarquia satânica, haviam sido convocados a caverna de Lúcifer, no Vale dos Condenados, para conferenciar com o mestre. Estavam apreensivos e indignados com a situação presente. Até então, a Estrela da Manhã ainda não havia se pronunciado sobre o papel do infernais no Apocalipse e muito menos na Batalha do Armagendom, e os duques ficaram confusos.
Desejavam cobrar uma atitude de seu líder, queriam o aval dele para posicionar suas hordas e atacar os celestes, revanche pelas quais esperavam desde a derrota dos caídos. 
Em uma das salas do interior da caverna, de paredes chamuscadas e nichos de fogo, havia nove cadeiras feitas de ossos humanos, oito delas ocupadas pelos terríveis demônios. Uma estava vazia , e aquele era o assento de Apollyon. Acima, em uma plataforma de pedra, havia o trono de Lúcifer, ao lado estava o seu fiel bajulador, Samael, a Serpente do Éden.
Ao longe, um tímido observador escondia-se nas sombras. Era Amael, o Senhor dos Vulcões, que às vezes também ficava na companhia de Lúcifer.
Samael gostava de chamar Lúcifer de altíssimo para iguá-la-lo ao Deus adormecido.
A maravilhosa aparência de Lúcifer contrastava com o concílio de monstros. Era belo, de feições delicadas, e teria o corpo perfeito se não fossem as asas de morcego que lhe marcavam as costas.
A tripla contenda entre Miguel, Gabriel e Lúcifer é um tanto confusa. Quando há mais de dois lados envolvidos numa disputa, o terceiro deve procurar aliar-se. Mas quem aceitaria a ajuda do Diabo? Miguel sempre foi seu maior oponente, e Gabriel, tornou-se uma figura bondosa, repudiando qualquer ação infernal.
Nessa guera, só lamento por aqueles que não tiveram a chance de escolher seu partido, aqueles que tomaram as decisões erradas.
Ablon sentia-se comovido por Amael e concordava com a ideia de que ele não queria mesmo matar toda aquela gente, mas o Senhor do Vulcões tivera sim, uma escolha. Teve, contudo, receio de assumi-la, teve medo de enfrentar os arcanjos, e talvez por isso se sentisse tão mal. 

A Fortaleza de Sion

Dentre todas as edificações do etéreo (plano espiritual), a Fortaleza de Sion é a mais magnífica. Suas proporções superam em todos os aspectos as estruturas humanas -- mas parece uma torre, edificada em cem anéis decrescentes, um sobre o outro, terminando em um pequenino pátio circular, onde está fixado o maior dos artefatos do mundo, a Roda do Tempo, o círculo místico criado por Deus para marcar a continuidade do sétimo dia.
A magnitude da fortaleza é tamanha que o primeiro anel, a base, chega a superar três mil metros de diâmetro. De suas paredes externas, assentadas por uma rocha avermelhada, nascem dezenas de milhares sacadas, janelas e umbrais, cautelosamente vigiados pelas poderosas legiões de querubins que guardam e cercam o perímetro. Em seu interior, um número incalculável de câmaras e salas de abrigo aos partidários do arcanjo Miguel, anjos vis, invejosos, que deixaram suas moradas no paraíso para lutar a grande Batalha do Armagedom. A fortaleza também é chamada de Torre das Mil Janelas, embora tenha muito mais do que um milhar de passagens.
Ao redor de Sion existe um circulo de montanhas que o protegem. Na base da Torre existe uma porta metálica que abri-se sem ser tocada, revelando um aposento curioso ao término de uma escada ascendente. Era uma grande sala redonda, revestida com as mesmas pedras vermelhas que compunham a fortaleza. Em suas paredes, duas dúzias de portas de ferro, todas fechadas. As dobradiças pareciam seladas, e nas portas não haviam maçanetas, mas cada uma delas tinha no centro um recuo anelado, decorado com símbolos angélicos. Esses nichos são um tipo de fechadura mística, onde são encaixadas chaves redondas. No meio da sala fixava-se um pedestal em formato de meia coluna, sobre o qual jazia um livro de aparência antiga, escrito por dentro e por fora.
Na câmara havia apenas uma única porta aberta, diferente das outras, mais larga. Sua passagem levava a uma segunda escada, bem mais estreita, no percurso Miguel pegou o Livro da Vida do pedestal e o guardou consigo.
Os degraus culminavam em um alçapão aberto, que saia para um pequeno pátio redondo. No meio descansava uma grande roda, como uma mesa redonda de pedra, presa ao chão por um eixo. As extremidades da roda eram marcadas por uma sucessão de caracteres, como os números de um relógio. As incrições, derivavam do código sagrado dos malakins, um idioma anterior a aurora do mundo. Aquele estreito terraço era o último nível da Torre de Sion.

domingo, 29 de maio de 2016

Cesaréia - Jerusalém

A cidade portuária da Palestina era Cesaréia. A joia do Mediterrâneo, como era chamada, fora construída por Herodes, o Grande, rei da Judéia, em homenagem ao imperador Cesar Augusto, e rapidamente se tornou o maior centro romano da região. O porto de Cesaréia era provavelmente a obra de engenharia mais magnífica de Israel, com suas muralhas que avançavam mar adentro, formando uma piscina natural e segura para os navios atracarem. O portão marítimo por onde entravam os barcos era ladeado por grandes estátuas de mármore, e mais adiante avistava-se a torre do farol, muito menor e mais modesta que a de Alexandria.
O vale do Cédron formava uma falda profunda, como um leito seco de um rio, e alem dele: Jerusalém.
Altos muros cercavam a cidade, que então se dividia em quatro partes: a cidade baixa, a cidade alta, os subúrbios e a área do Templo, cuja principal construção era o Templo de Herodes, sede do conselho de sacerdotes e ponto fundamental da fé judaica. Para lá convergiam as preces de todos os israelitas do mundo, santuário que, em outros tempos, abrigara a maior relíquia do seu povo: A Arca da Aliança. O templo era um edifício alto, imponente, de umbrais adornados por placas de ouro e prata. Ficara ao centro de uma série de pátios, circundados por um muro de treze metros de altura.
A Casa de Deus, assim referida pelos fieis em seu tempo, estava sob o controle do sumo sacerdote, que também era o oficial que presidia o Sinédrio, um concílio de figuras ilustres, de especial destaque na cidade.
Uma língua de fumaça subia do pátio interno, onde uma pira ritualística queimava objetos de oferenda. Ao norte, as torres da Fortaleza Antônia -- residência do procurador romano -- apontavam para o céu, e a oste, encostado as muralhas da cidade alta, destacava-se o Palácio de Herodes, então habitado por seu filho, Herodes Antipas.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

O Farol de Alexandria

A cidade de Alexandria fora construída em uma estreita faixa de terra ao nível do mar, comprimida entre o mar e o Mediterrâneo ao norte, e o esplendoroso lago Mareotis ao sul. A capital outrora fora o lar de uma pacata vila de pescadores, até que, em um dia de verão do ano 332 a.C., Alexandre, o Grande, que acabara de conquistar o Egito, viajava com sua comitiva ao oásis Siwa, na Líbia, quando avistou uma aldeia e a deslumbrante ilha rochosa que protegia o ancoradouro. Maravilhado com a beleza e o potencial daquele recanto bucólico, decidiu que ali fundaria sua capital regional, uma localidade que mais tarde seria batizada em sua homenagem -- Alexandria.
A metrópole se tornaria parte fundamental da rota marítima que ligava a Grécia ao Egito, servindo também como ponto de saída para a via navegável que percorria o Nilo, atravessava o Mar Vermelho e desembocava no Oceano Índico.
Embora fosse Macedônio, Alexandre era apaixonado pela cultura grega, considerando-se um helênico. Todos os seus palácios obedeciam em detalhes ao modelo arquitetônico grego, com fachadas triangulares, altas colunas que sustentavam o teto e longas escadarias de mármore que conduziam a entrada principal. Alexandria não era diferente. Portanto, em vários aspectos, a cidade se parecia muito com Atenas, mas a dinastia dos Ptolomeus, que passou a governar o Egito alguns anos após a morte de Alexandre, reformou parte da metrópole e deu a ela uma aparência mais faraônica.
Ptolomeu II, que reinou por volta de 280 a.C., espalhou obeliscos egípcios pela capital, ergueu colunas decoradas com antigos hieróglifos e erigiu inúmeros monumentos imortais como o palácio real, o Tempo de Serapis e o famoso Farol de Alexandria. Para fazer frente a Atenas no domínio intelectual, a dinastia construiu o Mouseion, a grandiosa biblioteca que abrigava, em seu tempo, mais de quinhentos mil volumes, entre eles os manuscritos de Aristóteles, os comentários de Platão e incontáveis textos proféticos judaicos.
A enseada, abraçada e defendida por uma muralha que se precipitava mar adentro, protegendo os navios atracados. Uma faixa artificial de terra, com base de cascalho e superfície de pedra, ligava o continente a ilha de Faros, onde fora edificada uma das sete maravilhas de antigamente. O Farol de Alexandria era uma torre larga, de 150 metros de altura, toda construída de pedra calcária e encimada por uma magnífica estátua de bronze representando Poseidon, com seu inseparável tridente. Mas o atrativo mais impressionante do edifício estava no último dos seis andares, onde uma miríade de espelhos fitava o horizonte como uma luneta, refletindo o mar e detectando a aproximação de navios invisíveis a olho nu. A noite esses mesmos espelhos giratórios multiplicavam a luz do fogo que ardia no andar de baixo, emitindo uma majestoso clarão que guiavam os barcos no escuro. Além de ter boas estradas por toda a encosta do mar Interior.
O Brucheium era um dos distritos mais belos e movimentados de Alexandria. Ficava na ala leste da cidade, encostado as muralhas  e recortado por um canal, aberto para ligar o lago Mariotis ao porto marítimo.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Enoque - A Capital do Mundo

A Gruta dos Afogados, nome dado pelos renegados, a caverna que se abria em forma de túnel e conduzia as fundações da terra. O grande salão natural, desenhado pela força da atividade vulcânica, era um lugar sufocante, apesar da amplitude. Um ruído constante inundava a galeria, sob a forma de um único lamento de desespero. Era o som ofegante dos condenados, o eco dos fantasmas de Enoque, que pereceram afogados durante a grande inundação e ainda tentavam, em vão, deixar as galerias submersas.
O túnel ao fim da caverna estreitava-se ao diâmetro de dois metros e descia em caracol por alguns quilômetros, penetrando fundo no coração da terra.
Após uma longa descida, o túnel abria-se no glorioso Caminho da Eternidade, um corredor muito largo, ladeado por altos muros e separando em duas pistas por uma extensa fileira de colunas, chamadas Pilares da História. Nelas, milhares de caracteres contavam a história da linhagem dos reis de Enoque, começando por Caim e terminando em Lemék (Lameque). A catástrofe arquitetara um teto cavernoso no corredor, irregular e oblíquo.
Além do Caminho da Eternidade estava a Porta do Sol, um portão de quinze metros, de umbral inclinado para dentro e recortado na estrutura do muro principal da cidade. Sobre ele ainda era visível o desenho de uma árvore de folhas fartas -- a Árvore do Conhecimento, uma referência simbólica ao antecessor de toda espécie humana, Adão.
O ruído ofegante dos fantasmas aumentava naquele trecho, porque era para lá que todos os espectros se dirigiam, para a saída da cidade.
Através da grande porta, uma avenida larga, contornada por prédios de pedra em ruínas, fora, quando Lemék ainda vivia, o acesso ao palácio real.

A Sala dos Heróis

A Sala dos Heróis era uma câmara vasta, circular, de teto ogival, fracamente iluminada por uma grande fogueira que ardia bem no meio do salão, ao centro de uma mesa redonda de pedra, trabalhada para abrigar vinte assentos -- um para cada Ancião das famílias antigas e mais dois para o rei e a rainha. As paredes, também de pedra, não estavam divididas em seções ou blocos, porque toda a sala fora esculpida a partir de um único e colossal fragmento de rocha. Suas paredes, por isso, eram indestrutíveis e conservaram o recinto intacto mesmo durante os horrores do dilúvio.
Encostadas nas paredes, havia dez grandes estátuas de vinte metros de altura, retratando os famosos heróis que pereceram durante as Guerras Mediterrâneas, uma série de conflitos entre Enoque e Atlântida, que culminou com a vitória dessa última.
A capital de Nod alcançara o esplendor entre 40.000 e 12.000 a.C., mais de dez mil anos antes dos Egípcios e dos Babilônicos, ambas civilizações que floresceram após o dilúvio.


Para alguns que procuram embasamento
Bíblico vejam  Gênesis 4.16 - 24.

A Terra de Nod

A região de Nod, cuja capital era Enoque, foi a maior das nações humanas antes do dilúvio, ao lado da memorável Atlântida. O deserto a circundava, compunha-se de um solo rochoso, escuro, formado por um tipo singular de rocha vulcânica. Esse terreno, que outrora se fazia uniforme, sofrera com a força das águas do cataclismo, acabando por se tornar uma vasta planície de estilhaços de rocha. A areia, trazido pelo vento ao longo de milhares de anos, acumulava-se em pequenas crateras, concebendo curiosas "piscinas de terra", apelidadas pelos árabes de Hin-Kaban, Caldeirão de Pedra. Os relatos dos cananeus, que se referiam a Nod como "um país distante, assombrado, de solo negro e devastado", podem ter se originado daí. Certamente, se os cananeus alguma vez se aventuraram por aquelas bandas, identificaram-nas como alvo de uma extraordinária devastação.
Quando as águas do dilúvio baixaram, Amael, o Senhor dos Vulcões, fez surgir no solo de Nod um terrível jorro de magma, uma majestosa explosão de lava que desceu sobre as já destronadas fundações de Enoque. Os detritos da erupção soterraram os escombros, sepultando a cidade para sempre sob uma colina funesta. O acaso, contudo, foi generoso em sua arquitetura. Ainda havia oxigênio nos níveis inferiores quando os dejetos vulcânicos encerraram o buraco. Os gases das profundezas pularam para fora, abrindo caminho com velocidade e força devastadoras. Esses caminhos desenharam uma série de passagens que, uma vez solidificado o magma, formaram túneis entre as ruínas e o mundo exterior. O principal túnel para o ventre de Enoque descansa abaixo do morro negro, ao fim de uma gruta onde os renegados, há muito tempo, buscaram abrigo em uma noite de tempestade.
O morro. A gruta. O túnel. 
Enoque, a Primeira e Última.

sábado, 21 de maio de 2016

Fogo no Céu

Fogo no Céu. O sangue que queimava como óleo. Um clangor de metal. Espadas. Lâminas que se chocavam. Gritos de combate. Calor. Ódio. O coração que clamava por justiça. E o chão desmoronando sob nossos pés, uma força terrível que nos dragava para baixo, nos puxava para fora, ferindo-nos.
Em seguida, as estrelas. O espaço. O frio. Um explosão nebulosa. Caíamos, despencávamos e não conseguíamos mais voar. Abandonados. Expulsos. Renegados.
A matéria sucedeu-se ao abismo. A terra. A areia que grudava na pele. As asas manchadas de sangue. A vergonha que se transformara em vingança.
Era a expulsão dos anjos renegados. Eram as últimas lembranças e mais profundas recordações da insurreição e de nossa posterior chegada ao mundo dos homens, diz Ablon.
Acontecera ali, naquelas mesmas planícies, chamadas outrora de Terra de Nod, havia 2.500 anos (atual ano 1 a.C.). O deserto fora nosso ponto de partida. A Haled, nossa prisão.
Desconsolados e perseguidos, os anjos renegados caminharam juntos para oeste, escapando de seus algozes, até encontrar a cidade devastada de Enoque, submersa nas entranhas do mundo, desde o dilúvio que a liquidara.
Rancorosos e vingativos, os espíritos de seus habitantes, que ainda vagavam pelos escombros da metrópole afundada, aceitaram-nos em seu refúgio. Reconheceram-nos como inimigos dos arcanjos e, com sua energia astral levantaram uma cobertura mística, que ocultou as emanações de nossa aura pulsante. Naquele lugar, naquela cidade perdida, não seríamos descobertos e teríamos o tempo necessário para planejar nossas entrada na sociedade mortal.
Aprendemos a ocultar nossas vibrações e decidimos não desprender mais as asas, a fim de nos confundirmos com os humanos. As inscrições, as obras de arte e os documentos antigos nos ensinaram tudo que precisávamos saber sobre a natureza terrena.
Aprendemos a ler e a falar o idioma de Enoque, que formou as bases para todas as línguas da terra.
Enoque foi nosso santuário, o primeiro e último refúgio da Irmandade dos Renegados, o lugar onde aquele formidável grupo de guerreiros se reuniu pela última vez. Foi no túmulo dos homens que deixamos nossa divindade. Foi ali que abandonamos nossa glória.
Enoque, a Primeira e Última.
Foram tempos difíceis, mas ao menos estávamos juntos, os dezoito anjos renegados, diz Ablon.
Enoque, a Primeira e Última.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 09)

A Exclusão de Dagobert II da História

Com a morte de Dagobert II em 679, a dinastia merovíngia efetivamente terminou. Com a morte de Childeric III em 755, os merovíngios aparentemente desapareceram por completo da história.
Segundo os Documentos do Monastério, contudo, a linhagem merovíngia sobreviveu, tendo sido perpetuada até hoje a partir do infante Sigisbert I, filho de Dagobert com sua segunda esposa, Giselle de Razès.
Não existem dúvidas de que Sigisbert existiu e que era herdeiro de Dagobert. Segundo todas as fontes exteriores aos Documentos do Monastério, entretanto, não se sabe o que aconteceu com ele. Certos cronistas têm aceito tacitamente que ele foi assassinado juntamente com seu pai e os outros membros da família real. Uma narrativa muito duvidosa assegura que ele morreu em uma caçada, por acidente, um ano ou dois após a morte do pai. Se isto for verdade, Sigisbert deve ter sido um caçador bastante precoce, pois ele não tinha mais do que três anos na época.
Não existe nenhum registro da morte de Sigisbert. Tampouco existe qualquer registro - à parte as evidências dos Documentos do Monastério - de sua sobrevivência. Todo o assunto parece ter sido perdido nas névoas do tempo, e ninguém parece interessar-se muito por isso - exceto, é claro, o Monastério do Sinai, que parece possuir informações não disponíveis em outras fontes, ou deliberadamente suprimidas, ou consideradas desimportantes demais para merecer investigação.
Não é de se surpreender que nenhuma narrativa do destino de Sigisbert tenha sido filtrada até chegar a nós. Nenhuma narrativa sobre o próprio Dagobert esteve acessível ao público até o século XVII. Em algum momento, durante a Idade Média, foi feita uma tentativa sistemática de apagar Dagobert da história, de negar que ele um dia tenha existido. Hoje Dagobert II pode ser encontrado em qualquer enciclopédia. Mas não há nenhum reconhecimento de sua existência até 1646. Qualquer lista ou genealogia de governantes franceses compilada antes desse ano simplesmente o omite, saltando, a despeito da flagrante inconsistência, de Dagobert I para Dagobert III, um dos últimos monarcas merovíngios, que morreu em 715. Só em 1655 Dagobert foi reintegrado em listas aceitas de reis franceses.
Considerando esse processo de esquecimento proposital, a escassez de informação sobre Sigisbert não deveria constituir nenhuma surpresa. Qualquer informação existente deveria ter sido deliberadamente suprimida.
Por que Dagobert II deveria ser suprimido da história? O que estaria sendo ocultado? Por que se deveria negar até mesmo a existência de um homem? Uma possibilidade seria, é claro, a de negar assim a existência de seus herdeiros. Se Dagobert nunca existiu, Sigisbert tampouco poderia ter existido. Mas por que deveria ser tão importante, muito mais tarde, no século XVII, negar que Sigisbert um dia existira?
A menos que ele tivesse realmente sobrevivido e que seus descendentes fossem considerados uma ameaça.

Tínhamos a impressão de estar lidando com algum tipo de pacto de encobrimento. É evidente que interesses velados seriam prejudicados, caso a sobrevivência de Sigisbert fosse tornada pública. No século IX e talvez já no tempo das Cruzadas, esses interesses pareciam ser a Igreja Romana e a linhagem real francesa. Mas por que o assunto continuaria a ter importância na época de Luís XIV? Nessa época, este deveria ser um ponto meramente acadêmico, pois três dinastias francesas tinham ido e vindo, e o protestantismo tinha quebrado a hegemonia romana. A menos que houvesse algo de muito especial no sangue merovíngio. Não, é claro, propriedades mágicas, mas algo mais - algo que mantivesse sua potência explosiva mesmo depois do fim das superstições sobre o sangue mágico.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 08)

A Usurpação pelos Carolíngios

Rigorosamente falando, Dagobert não foi o último governante da dinastia merovíngia. Na realidade, os monarcas merovíngios retiveram pelo menos a condição nominal por mais três quartos de século. Mas estes últimos merovíngios mereceram o nome derois fainéants.
Muitos deles eram muito jovens. Como conseqüência, eram freqüentemente fracos, peões nas mãos dos mayors do palácio, incapazes de afirmar sua autoridade ou de tomar decisões próprias.
Eram realmente um pouco mais que vítimas, e vários foram sacrificados.
Além disso, os últimos merovíngios foram de ramos paralelos, não descendentes diretos de Mérovée e de Clóvis. A linha principal da descendência merovíngia foi deposta com Dagobert II. Para todos os efeitos e propósitos, portanto, o assassinato de Dagobert pode ser considerado o marco do final da dinastia merovíngia. A morte de Childeric III, em 754, foi uma mera formalidade no que diz respeito ao poder dinástico. Como governantes dos francos, a linhagem merovíngia tinha sido efetivamente extinta muito tempo antes.
Quando o poder escapou das mãos dos merovíngios, passou para as mãos dos mayors do palácio, um processo que já havia começado antes do reinado de Dagobert. Foi um mayor do palácio, Pepin, o Gordo, que planejou a morte de Dagobert. Pepin foi seguido de seu filho, o famoso Charles Martel.
Aos olhos da posteridade, Charles Martel é uma das figuras mais heróicas da história da França. Existe certamente algum fundamento nisso. Sob Charles, a invasão moura da França foi abalada na Batalha de Poitiers, em 732. E Charles, em virtude de sua vitória, foi, de algum modo, tanto "defensor da fé" quanto "salvador da cristandade".
Curiosamente, Charles Martel, embora tenha tido muita força, nunca subiu ao trono, que certamente estava ao seu alcance. Na realidade, ele parece ter considerado o trono com um certo temor supersticioso - e, muito possivelmente, como uma prerrogativa especificamente merovíngia. Os sucessores de Charles, que subiram ao trono, tiveram o cuidado de estabelecer sua legitimidade casando-se com princesas merovíngias.
Charles Martel morreu em 741. Dez anos depois, seu filho, Pepin III, mayor do palácio do rei Childeric III, engajou o apoio da Igreja para reclamar formalmente o trono. Os embaixadores de Pepin perguntaram ao papa: "Quem deveria ser rei? O homem que atualmente detém o poder, ou aquele que, embora chamado de rei, não tem nenhum poder?" O papa pronunciou-se em favor de Pepin.
Com apostólica autoridade, ordenou que Pepin fosse coroado rei dos francos, numa traição ao pacto ratificado por Clóvis dois séculos e meio antes. Legitimado por Roma, Pepin depôs Childeric III, confinou o rei em um monastério e, para humilhá-lo, destituiu-o de seus "poderes mágicos'" privando-o de seu cabelo sagrado. Childeric morreu quatro anos depois, e a ocupação do trono por Pepin não foi disputada.
Um ano antes, surgiu um documento crucial, que iria alterar o curso da história ocidental: a Doação de Constantino. Hoje não se duvida que ele foi forjado, fabricado - e de maneira não muito inteligente – no interior da chancelaria papal. Naquela época, contudo, foi considerado genuíno, obtendo enorme influência.
A Doação de Constantino data da suposta conversão de Constantino ao cristianismo, em 312 d.C. Segundo o documento, Constantino doava oficialmente ao bispo de Roma seus símbolos e sua regalia imperiais, que então se tornaram propriedade da Igreja. A Doação alega ainda que Constantino, pela primeira vez, tinha declarado que o bispo de Roma era o "vigário de Cristo", oferecendo a ele a condição de imperador. Como "vigário de Cristo", o bispo teria, supostamente, devolvido a regalia imperial a Constantino, que a usou subseqüentemente com a sanção e permissão eclesiásticas, mais ou menos como um empréstimo.
As implicações desse documento são claras. De acordo com a Doação de Constantino, o bispo de Roma exerceria sobre a cristandade a suprema autoridade secular, além da espiritual. Seria, na verdade, um papa imperador, que disporia como quisesse da coroa imperial, podendo delegar seu poder, no todo ou em parte, a seu bel prazer. Em outras palavras, ele possuía, através de Cristo, o direito indiscutível de criar ou depor reis. Da Doação de Constantino deriva, em última instância, o subseqüente poder do Vaticano em assuntos seculares.
Retirando daí sua autoridade, a Igreja lançou sua influência em nome de Pepin III. Elaborou uma cerimônia na qual o sangue de usurpadores, ou de qualquer um, podia ser declarado sagrado. Esta cerimônia veio a ser conhecida como coroação e unção, no sentido que estes termos passaram a ser entendidos na Idade Média e na Renascença. Na coroação de Pepin, os bispos foram autorizados pela primeira vez a assistir a cerimônia em pé de igualdade com os nobres seculares. E a coroação em si não mais significava o reconhecimento de um rei, ou um pacto com um rei. Agora, ela consistia em nada menos que a criação de um rei.
O ritual de unção também foi transformado. No passado, quando praticado, ele era uma investidura cerimonial, um ato de reconhecimento e ratificação. Agora, contudo, assumia um significado novo. Tomava precedência sobre o sangue, e podia - magicamente, por assim dizer - santificar sangues. A unção tornou-se algo mais que um gesto simbólico. Tornou-se o ato através do qual a graça divina era conferida a um governante. E o papa, ao realizar este ato, tornavase mediador supremo entre Deus e os reis. Através do ritual de unção, a Igreja se reservava o direito de fazer reis. O sangue passava a ser subordinado ao óleo. E todos os monarcas se tornavam subordinados, e subservientes, ao papa.
Em 754, Pepin III recebeu oficialmente a unção em Ponthion, inaugurando assim a dinastia carolíngia. O nome deriva de Charles Martel, embora seja geralmente associado aos governantes carolíngios mais famosos, como Charles, o Grande, Carolus Magnus ou, como ele é mais conhecido, Carlos Magno. Em 800, Carlos Magno foi proclamado imperador do Sacro Império Romano, um título que, em virtude do pacto com Clóvis três séculos antes, deveria ser reservado exclusivamente à linhagem merovíngia. Roma se tornava agora o assento de um império que abraçava toda a Europa ocidental, e cujos governantes só governavam com a sanção do papa.
Em 496 a Igreja se havia ligado de forma perpétua à linhagem merovíngia. Ao sancionar o assassinato de Dagobert, ao inventar as cerimônias de coroação e unção, ao endossar a pretensão de Pepin ao trono, ela traiu o seu pacto. Ao coroar Carlos Magno, a traição não só foi tornada pública, como passou a ser um fato consumado. Nas palavras de uma autoridade moderna:

Assim, nós não podemos saber ao certo se a unção com consagração dos carolíngios tinha a intenção de compensar pela perda de propriedades mágicas do sangue, simbolizadas pelo cabelo longo. Se ela compensava mesmo alguma coisa, era provavelmente a perda de fé ocorrida pela quebra, de forma tão chocante, de um voto de fidelidade.

E novamente: "Roma mostrou o caminho ao providenciar, pela unção, um ritual voltado para 'fabricar' reis (...) que de alguma forma limpava a consciência de 'todos os francos'."
Nem todas as consciências, entretanto. Os próprios usurpadores parecem ter sentido, se não culpa, pelo menos uma necessidade aguda de estabelecer sua legitimidade. Para tal, Pepin III, imediatamente após sua unção, casou-se pomposamente com uma princesa merovíngia. E Carlos Magno fez o mesmo.
Carlos Magno, além disso, parece ter sido dolorosamente consciente da traição envolvida em sua coroação. Segundo narrativas contemporâneas, a cerimônia foi cuidadosamente teatral, planejada pelo papa pelas costas do monarca franco. Carlos Magno parece ter ficado surpreso e, ao mesmo tempo, profundamente embaraçado.
Uma coroa foi fabricada clandestinamente. Carlos Magno foi convidado a Roma e então persuadido a assistir a uma missa especial. Quando ele tomou seu lugar na igreja, o papa, sem prevenilo, colocou uma coroa em sua cabeça, enquanto as pessoas o aclamavam como "Carlos, Augustus, coroado por Deus, o grande imperador dos romanos, amante da paz". Nas palavras de um cronista da época, Carlos Magno "tornou claro que ele não teria entrado na catedral naquele dia, embora aquele fosse o maior dos festivais da Igreja, se tivesse sabido antes o que o papa estava planejando fazer".
Qualquer que tenha sido a responsabilidade do papa no assunto, o pacto com Clóvis e com a linhagem merovíngia foi vergonhosamente traído. E todas as investigações indicam que essa traição, embora ocorrida há mais de 1.100 anos, continua a exasperar o Monastério do Sinai. Mathieu Paoli, o pesquisador independente citado no capítulo anterior, chegou à seguinte conclusão:
Para eles [o Monastério do Sinai], a única nobreza autêntica é a de origem visigótica-merovíngia. Os carolíngios, e então todos os outros, são usurpadores. De fato, eles não eram mais que funcionários do rei, encarregados de administrar terras. Depois de transmitir hereditariamente seu direito de governar essas terras, pura e simplesmente tomaram o poder para si mesmos. Ao consagrar Carlos Magno no ano 800, a Igreja perjurou, pois no batismo de Clóvis havia realizado uma aliança com os merovíngios, que haviam feito da França a filha mais velha da Igreja.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 07)

Dagobert II

Clóvis morreu em 511, e o império que ele havia criado se dividiu, - segundo o costume merovíngio, entre seus quatro filhos. Por mais de um século após a morte de Clóvis, a dinastia merovíngia presidiu vários reinos diferentes e freqüentemente rivais, enquanto as linhas de sucessão se tornaram progressivamente mais imbricadas e as pretensões ao trono cada vez mais conflitantes. A autoridade, antes centrada em Clóvis, tornou-se progressivamente mais confusa, mais incipiente, e a ordem secular deteriorou-se. Intrigas, maquinações, raptos e assassinatos políticos tornaram-se cada vez mais comuns. E os chanceleres da corte, ou "mayors do palácio", acumularam mais e mais poder - um fator que contribuiria finalmente para a queda da dinastia.
Cada vez mais desprovidos de autoridade, os últimos governantes merovíngios foram freqüentemente chamados les rois fainéant ["os reis enfraquecidos"]. A posteridade os tem estigmatizado desdenhosamente como monarcas fracos, incapazes, afeminados e maleavelmente dependentes, nas mãos de conselheiros espertos e astuciosos. Nossa pesquisa revelou que este estereótipo não é acurado. É verdade que as constantes guerras, vendetas e conflitos destruidores empurraram vários príncipes merovíngios para o trono em tenra idade, tornando-os facilmente manipuláveis por seus conselheiros. Mas aqueles que atingiam a idade adulta mostraram-se tão fortes e decididos quanto qualquer de seus predecessores. Este parece ter sido o caso de Dagobert II.
Dagobert II nasceu em 651, herdeiro do reino de Austrasie. Com a morte de seu pai em 656, tentativas extravagantes foram feitas para impedir sua subida ao trono. Realmente, o início da vida de Dagobert se parece com uma lenda medieval, ou um conto de fadas.
Mas trata-se de uma história bem documentada.
Quando seu pai morreu, Dagobert, então com cinco anos de idade, foi raptado pelo mayor do palácio, um homem chamado Grimoald.
As tentativas de encontrar o menino foram infrutíferas, e não foi difícil convencer a corte de que ele havia morrido. Nestas bases, Grimoald engendrou a ascensão de seu próprio filho ao trono, afirmando que este havia sido o desejo do monarca anterior, o falecido pai de Dagobert. O artifício funcionou. Até mesmo a mãe de Dagobert, acreditando na morte do filho, cedeu às ambições do mayor.
Entretanto, Grimoald foi mal sucedido em sua tentativa de matar o jovem príncipe, confiado em segredo ao bispo de Poitiers. O bispo, parece, relutou em matar a criança, finalmente exilada na Irlanda. Dagobert cresceu até a idade adulta no monastério irlandês de Sloane, próximo de Dublin; e lá, na escola ligada ao monastério, recebeu uma educação inexistente na França daquela época. Durante esse período, em algum momento ele teria freqüentado a corte do Grande Rei de Tara, conhecendo os três príncipes de Northumbria, que também estavam sendo educados em Sloane. Em 666, provavelmente ainda na Irlanda, Dagobert casou-se com Mathilde, uma princesa celta. Logo depois mudou-se para a Inglaterra e estabeleceu residência em York, no reino de Northumbria, onde se tornou amigo íntimo de São Wilfrid, bispo de York, que veio a ser seu tutor.
Durante o período em questão, um cisma ainda existia entre as igrejas Romana e Celta, com esta última recusando a autoridade da primeira.
A fim de obter a unificação, Wilfrid tinha como tarefa trazer a Igreja Celta para dentro da Igreja Romana, o que conseguiu já em 664. Mas sua amizade posterior com Dagobert II não era destituída de segundas intenções. Na época de Dagobert, a fidelidade merovíngia a Roma - na forma como foi ditada pelo pacto da Igreja com Clóvis um século e meio antes - era menos fervente do que poderia ser. Sendo Wilfrid um leal aliado de Roma, ele estava ansioso para consolidar a supremacia romana, não somente na Grã-Bretanha, mas também no continente. Se Dagobert retornasse à França e reclamasse o reino de Austrasie, seria interessante assegurar sua lealdade. Wilfrid pode muito bem ter visto no príncipe exilado um possível braço armado da Igreja.
Mathilde, a esposa celta de Dagobert, morreu ao dar à luz, em 670, sua terceira filha. Wilfrid apressou-se em arranjar um novo par para o monarca recentemente viúvo. No ano seguinte, Dagobert casou-se pela segunda vez. Se sua primeira aliança era importante do ponto de vista dinástico, a segunda o era ainda mais. A nova esposa de
Dagobert era Giselle de Razès, filha do conde de Razès e sobrinha do rei dos visigodos. Em outras palavras, a linhagem merovíngia aliou-se à linhagem real dos visigodos. Aí repousam as bases de um império embrionário que teria unido a maior parte da França, estendendo-se através dos Pirineus até as Ardenas. Tal império, além disso, colocaria os visigodos - ainda com fortes tendências arianas - sob o firme controle de Roma.
Dagobert já havia retornado ao continente quando se casou com Giselle. De acordo com a documentação existente, o casamento foi celebrado na residência oficial de Rhédae, ou Rennes-Ie-Château, na igreja de Sainte Madeleine - a estrutura existente no local onde a igreja de Saunière seria erigida depois.
O primeiro casamento de Dagobert tinha produzido três filhas mas nenhum herdeiro masculino. Com Giselle, Dagobert teve mais duas filhas e, por último, em 676, um filho - o infante Sigisbert IV. Dagobert parece ter passado cerca de três anos em Rennes-Ie-Château, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos em seus domínios no norte. Finalmente, em 674, a oportunidade se apresentou. Com o apoio de sua mãe e de seus conselheiros, o monarca longamente exilado se anunciou, reclamou seu reino e foi oficialmente proclamado rei da Austrasie. Wilfrid de York atuou neste acontecimento. Segundo Gérard De Sède, uma figura muito mais evasiva e muito mais misteriosa, a respeito de quem existe muito pouca informação histórica, também atuou: São Amatus, bispo de Sinai, na Suíça.
Uma vez restituído ao trono, Dagobert não foi roi fainéant. Mostrou-se, ao contrário, um merecido sucessor de Clóvis, afirmando e consolidando sua autoridade, domando a anarquia que prevalecia em toda a Austrasie e restabelecendo a ordem. Governou com firmeza, quebrando o controle de vários nobres rebeldes que haviam mobilizado suficiente poder econômico e militar para desafiar o trono.
E em Rennes-Ie-Château ele teria reunido um tesouro substancial, destinado a financiar a reconquista da Aquitânia, que havia escapado das mãos merovíngias quarenta anos antes e se declarado principado independente.
Ao mesmo tempo, Dagobert deve ter representado um grave desapontamento para Wilfrid de York, pois não passou a atuar como o braço armado da Igreja. Pelo contrário, ele parece ter abortado tentativas da Igreja de se expandir em seu reino. Existe uma carta de um irado prelado franco condenando Dagobert por cobrar taxas, por "escarnecer das igrejas de Deus e de seus bispos".
Este não foi o único motivo pelo qual Dagobert parece ter enraivecido Roma. Em virtude de seu casamento com uma princesa visigoda, ele havia adquirido um território considerável, onde hoje é o Languedoc. E pode muito bem ter adquirido mais alguma coisa. Só nominalmente os visigodos eram leais à Igreja de Roma. Tal aliança, na verdade, era extremamente tênue, e uma certa tendência ao arianismo persistia na família real. Existem evidências que sugerem que Dagobert absorveu algo dessa tendência.
Por volta de 679, três anos depois de subir ao trono, Dagobert tinha feito vários inimigos, tanto seculares quanto eclesiásticos. Havia incorrido na hostilidade de alguns nobres vingativos, cuja autonomia restringira. Havia angariado a antipatia da Igreja, cujas tentativas de expansão abortara. Ao estabelecer um regime efetivo e centralizado, havia provocado inveja e alarme em outros potentados francos, governantes de reinos adjacentes. Alguns desses governantes tinham aliados e agentes dentro dos domínios de Dagobert. Um deles era o própriomayor do palácio, Pepin, o Gordo. E Pepin, alinhando-se clandestinamente com os inimigos políticos de Dagobert, não se excluiu nem de traição nem de assassinato.
Assim como a maioria dos governantes merovíngios, Dagobert tinha no mínimo duas capitais. A mais importante delas era Stenay, nas bordas das Ardenas. Próximo do palácio real de Stenay estendia-se um terreno muito arborizado, considerado sagrado havia muito tempo, chamado floresta de Woëvres. Em 23 de dezembro de 679, Dagobert teria ido caçar ali. Considerando-se a data, a caça bem poderia ter sido uma ocasião ritual de algum tipo. Em todo caso, o que se seguiu evoca uma variedade de ecos, inclusive a morte de Siegfried em Nibelungenlied.
Por volta de meio-dia, sucumbindo à fadiga, o rei se deitou para repousar perto de um riacho, ao pé de uma árvore. Enquanto dormia, um de seus serventes - supostamente, um de seus afilhados - aproximou-se sorrateiramente e, agindo sob as ordens de Pepin, atravessou-lhe o olho com uma lança. Os assassinos então retornaram a Stenay com a intenção de exterminar o restante da família, que ali residia. Não sabemos quão bem-sucedidos foram nessa última empreitada. Mas, sem dúvida, o reino de Dagobert e sua família tiveram um súbito fim. Sem perder muito tempo com luto, a Igreja endossou prontamente as ações dos assassinos do rei. Existe até uma carta de um prelado franco a Wilfrid de York, que tenta racionalizar e justificar o assassinato real.
O corpo de Dagobert e sua condição póstuma sofreram ambos uma série de curiosas vicissitudes. Imediatamente depois de sua morte, ele foi enterrado em Stenay, na Capela Real de São Rémy. Em 872 - quase dois séculos depois - foi exumado e removido para outra igreja.
Esta nova igreja tornou-se a Igreja de São Dagobert, pois no mesmo ano o falecido rei foi canonizado - não pelo papa (que até 1159 não detinha sozinho este direito), mas por um Conclave Metropolitano. A razão para a canonização de Dagobert permanece obscura. Segundo uma fonte, isto aconteceu porque suas relíquias teriam preservado as vizinhanças de Stenay contra os ataques dos vikings - embora esta explicação leve a dúvidas, pois não se sabe o que possuíam as relíquias para exercer tal poder. Autoridades eclesiásticas parecem embaraçosamente ignorantes sobre o assunto. Elas admitem que Dagobert, por alguma razão, tornou-se objeto de culto, passando a ter seu dia 23 de dezembro, o aniversário de sua morte - no calendário católico. Mas parecem completamente perdidas sobre a razão de ele ser tão cultuado. É possível, é claro, que a Igreja tenha se sentido culpada por seu próprio papel na morte do rei. A canonização de Dagobert pode, desta forma, ter sido uma tentativa de desagravo. Se isto é verdade, entretanto, não há indicação de por que este ato foi necessário, nem por que se teriam esperado dois séculos.
Nos séculos seguintes, Stenay, a igreja de São Dagobert e talvez as relíquias que continha, foram consideradas de grande importância por várias figuras ilustres. Em 1069, por exemplo, o duque de Lorraine avô de Godfroi de Bouillon - concedeu proteção especial à igreja e colocou-a sob os auspícios da abadia de Gorze, que se situava nas proximidades. Alguns anos mais tarde a igreja foi apropriada por um nobre local. Em 1093, Godfroi de Bouillon mobilizou um exército e sujeitou Stenay a um grande cerco - com o único propósito, parece, de resgatar a igreja e devolvê-la à abadia de Gorze.
Durante a Revolução Francesa, a igreja foi destruída e as relíquias de São Dagobert, assim como muitas outras através da França, foram dispersas. Atualmente, um cérebro contendo uma incisão ritual, que teria sido de Dagobert, está sob custódia de um convento em Mons.
Todas as outras relíquias do rei desapareceram. Mas em meados do século XIX, um documento dos mais curiosos veio à luz. Trata-se de um poema, uma litania em 21 versos, intitulado De sancta Dagobertomartyre prose, induzindo à idéia de que Dagobert havia sido martirizado por ou para alguma coisa. Acredita-se que este poema tenha sido escrito na Idade Média ou mesmo antes.
Sintomaticamente, ele foi encontrado na abadia de Orval.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 06)

Clóvis e seu Pacto com a Igreja

O mais famoso de todos os governantes merovíngios foi o neto de Mérovée, Clóvis I, que reinou entre 481 e 511. Seu nome é conhecido de todos os estudantes franceses, pois foi sob Clóvis que os francos se converteram ao cristianismo romano. E foi através dele que Roma começou a estabelecer na Europa Ocidental uma supremacia que não foi desafiada durante mil anos.
Por volta de 496, a Igreja Romana estava em situação precária. Ao longo do século V, sua própria existência tinha sido severamente ameaçada. Entre 384 e 399, o bispo de Roma já tinha começado a se denominar papa, mas sua condição oficial não era maior do que a de qualquer outro bispo, e bem diferente da do papa atual. Ele não era, em nenhum sentido, o líder espiritual ou a cabeça suprema da cristandade. Representava apenas um conjunto de interesses velados, uma das muitas formas divergentes de cristianismo, que lutava desesperadamente pela sobrevivência, contra uma variedade de cismas e pontos de vista teológicos conflitantes. Oficialmente, a Igreja Romana não possuía maior autoridade do que, digamos, a Igreja Celta, com a qual estava em atrito permanente. Sua autoridade não era maior do que a de heresias, como o arianismo, que negava a divindade de Jesus e insistia em sua humanidade. Durante a maior parte do século V, os bispados da Europa Ocidental ou eram arianos ou estavam vagos.
Se a Igreja Romana quisesse sobreviver e, além disso, exercer sua autoridade, ela necessitaria do apoio de um campeão, uma poderosa figura secular que pudesse representá-la. Para que a cristandade evoluísse de acordo com a doutrina romana, esta doutrina deveria ser disseminada, implementada e imposta por força secular - uma força suficientemente poderosa para enfrentar e finalmente extirpar o desafio dos credos cristãos rivais. Não é de se surpreender, então, que a Igreja Romana, em seu momento de necessidade mais aguda, procurasse Clóvis.
Por volta de 486, Clóvis tinha aumentado significativamente a extensão dos domínios merovíngios, lançando-se de Ardenas para anexar vários reinos e principados adjacentes, vencendo várias tribos rivais. Como resultado, muitas cidades importantes - Troyes, por exemplo, Rheims e Amiens - foram incorporadas ao reino. Em uma década, tornou-se claro que Clóvis estava a caminho de se tornar o chefe mais poderoso da Europa Ocidental.
A conversão e o batismo de Clóvis revelaram-se de importância crucial em nossa investigação. Uma narrativa do acontecimento foi compilada, em todos os detalhes, mais ou menos na época em que ele ocorreu. Dois séculos e meio mais tarde, esta narrativa, chamada A vida de São Rémy, foi destruída, exceto por umas poucas páginas manuscritas avulsas. E as evidências sugerem que ela foi destruída deliberadamente. Apesar disso, os fragmentos restantes testemunham a importância do que estava envolvido ali.
Segundo a tradição, a conversão de Clóvis foi súbita e inesperada, efetuada por sua esposa, Clotilde, ardente devota de Roma, que teria importunado seu marido até que ele aceitasse sua fé, tendo sido canonizada depois por seus esforços. Nesses esforços, ela teria sido guiada e assistida por seu confessor, São Rémy. Mas por trás dessas tradições repousa uma realidade histórica muito prática e mundana.
Quando Clóvis se converteu ao cristianismo romano e tornou-se o primeiro rei dos francos, ele tinha mais a ganhar do que a aprovação de sua mulher. Estava em jogo um reino mais tangível e substancial que o reino dos céus.
Sabe-se que, em 496, várias reuniões secretas ocorreram entre Clóvis e São Rémy. Imediatamente depois, estabeleceu-se um acordo entre Clóvis e a Igreja Romana. Para esta, foi um triunfo político importante, que asseguraria a sobrevivência da Igreja, estabelecendo-a como a suprema autoridade espiritual no Ocidente. Ele consolidou a condição de Roma como igual à da fé ortodoxa grega, baseada em Constantinopla; ofereceu uma perspectiva de hegemonia romana e meios efetivos de erradicar as cabeças de hidra da heresia. E Clóvis representava os meios de implementar estas coisas: a espada da Igreja, o instrumento pelo qual Roma imporia sua dominação espiritual, o braço secular e a manifestação palpável do poder romano.
Em troca, Clóvis receberia o título de Novus Constantinus. Em outras palavras, presidiria um império unificado - o Sacro Império Romano -, projetado para suceder àquele supostamente criado sob Constantino e destruído pouco tempo depois por visigodos e vândalos. Segundo um especialista moderno do período, Clóvis, antes de seu batismo, foi
"fortificado (. . .) com visões de um império que sucederia ao de Roma, que seria a herança da raça merovíngia".
De acordo com outro escritor moderno, "Clóvis deve agora tornar-se um rei do império ocidental, um patriarca dos alemães ocidentais, reinando, embora não governando, sobre todos os povos e reis".
O pacto entre Clóvis e a Igreja Romana, em suma, trouxe sérias conseqüências para a cristandade - não somente a daquele tempo, mas também a do milênio seguinte. O batismo de Clóvis marcaria o nascimento de um novo império romano, um império cristão, baseado na Igreja Romana e administrado, no nível secular, pela linhagem merovíngia. Um laço indissolúvel foi estabelecido entre e Estado, cada um devendo fidelidade ao outro, cada um se ligando perpetuamente ao outro. Para ratificar este laço, Clóvis, em 496, deixou-se batizar formalmente por São Rémy em Rheims. No clímax da cerimônia, São Remy pronunciou suas famosas palavras:

Mitis depone colla, Sicamber, adora quod incendisti, incendi quod adorasti. *
* Inclinai vossa cabeça humildemente, sicambriano, reverenciai o que haveis queimado e queimai o que haveis reverenciado.

É importante observar que, ao contrário do que historiadores às vezes sugerem, o batismo de Clóvis não foi uma coroação. A Igreja não fez de Clóvis um rei. Ele já o era, e tudo o que a Igreja podia fazer era reconhecê-lo como tal. Ao fazê-lo, a Igreja se ligava oficialmente não só a Clóvis, mas a uma linhagem. Neste ponto, o pacto se assemelhava àquele selado, segundo o Velho Testamento, entre Deus e o rei Davi - um pacto que pode ser modificado, como no caso de Salomão, mas não revogado, quebrado ou traído. E os merovíngios não perderam de vista o paralelo.
Durante os anos restantes de sua vida, Clóvis percebeu perfeitamente as ambiciosas expectativas de Roma em relação a ele. Com irresistível eficiência, a fé foi imposta pela espada; e com a sanção e o mandato espiritual da Igreja, o reino franco expandiu-se para o leste e o sul, englobando a maior parte da França e da Alemanha atuais.
Entre os numerosos adversários de Clóvis, os mais importantes foram os visigodos, que aderiram à cristandade ariana. Foi contra o império dos visigodos - que dominava os Pirineus e se estendia pelo norte até Tolouse - que Clóvis dirigiu suas mais assíduas e organizadas campanhas. Em 507 ele derrotou definitivamente os visigodos na Batalha de Vouillé. Logo depois, Aquitânia e Toulouse caíram em mãos francas. O império visigodo ao norte dos Pirineus caiu efetivamente antes do ataque franco. De Toulouse, os visigodos retiraram-se para Carcassonne. Expulsos de Carcassonne, estabeleceram sua capital, e último bastião, na região de Razès, em Rhédae - hoje cidade de Rennes-le-Château.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 05)

Sangue Real

Embora a cultura merovíngia fosse ponderada e surpreendentemente moderna, os monarcas que a presidiam eram já outro assunto. Não eram típicos nem mesmo dos governantes de seu tempo, pela atmosfera de mistério e lenda, mágica e sobrenatural, que os rodeava em vida. Os costumes e a economia do mundo merovíngio não diferiam marcantemente de outros do período, mas a aura sobre o trono e a linhagem real era bem peculiar.
Os filhos de sangue merovíngio não eram reis fabricados. Ao contrário, logo aos doze anos de idade eram considerados como tal.
Não havia cerimônia pública de unção, ou de coroação. O poder era simplesmente assumido, como se por direito sagrado. Mas enquanto o rei era autoridade suprema no reino, ele não era jamais obrigado – ou mesmo não se esperava dele que o fizesse - a manchar suas mãos com o ato mundano de governar. Ele era essencialmente uma figura ritualizada, um rei-sacerdote, e seu papel não era o defazer alguma coisa, mas de simplesmente ser. Em suma, o rei mandava, mas não governava. A este respeito, sua condição era de algum modo similar à da atual família real britânica. Governo e administração eram deixados para um oficial não real, equivalente a um chanceler. De modo geral, a estrutura do regime merovíngio tinha muitas coisas em comum com as monarquias constitucionais modernas.
Mesmo após sua conversão ao cristianismo, os governantes merovíngios se mantiveram polígamos, assim como os patriarcas do Velho Testamento. Ocasionalmente, possuíam haréns de proporções orientais. Mesmo quando a aristocracia, sob pressão da Igreja, tornou-se rigorosamente monogâmica, a monarquia permaneceu isenta. E a Igreja, curiosamente, parece ter aceito essa prerrogativa sem qualquer protesto. Segundo um comentarista:

Por que era ela [a poligamia] tacitamente aprovada pelos próprios francos? Nós podemos aqui estar em presença de um hábito antigo de poligamia em uma família real - uma família de tal nível que seu sangue não poderia ser enobrecido por nenhuma combinação, por mais vantajosa que fosse, nem degradado pelo sangue de escravos.
(...) Era indiferente se uma rainha fosse tirada de uma dinastia real ou do meio de cortesãs. (...) A fortuna da dinastia permanecia em seu sangue e era compartilhada por todos os que fossem daquele sangue.

E novamente: "É possível que, nos merovíngios, possamos ter uma dinastia de heerkönige alemães, derivada de uma antiga família de reis do período da migração." Quantas famílias podem ter gozado, em toda a história mundial, de tal condição exaltada e extraordinária?
Por que os merovíngios? Por que seu sangue estaria investido de tão imenso poder? Estas perguntas continuavam a nos intrigar.

A Lenda dos Merovíngios (Parte 04)

Mérovée e seus Descendentes

Nossa pesquisa exumou menções de pelo menos duas figuras históricas chamadas Mérovée, e não sabemos qual delas é considerada, pela lenda, descendente da criatura do mar. Um dos Mérovée foi um chefe sicambriano que viveu em 417, lutou sob os romanos e morreu em 438. Pelo menos um especialista moderno nesse período sugere que este Mérovée realmente visitou Roma e causou uma certa sensação. Há, de fato, registro de uma visita de um imponente líder franco, conspícuo por seu esvoaçante cabelo amarelo.
Em 448, o filho deste Mérovée, com o mesmo nome do pai, foi proclamado rei dos francos em Tournai e reinou até sua morte, dez anos depois. Ele pode ter sido o primeiro rei oficial dos francos como um povo unido. Em virtude disto, talvez, ou de todo o simbolismo desse fabuloso nascimento duplo, a dinastia que o sucedeu foi chamada desde então merovíngia.
O reino dos francos floresceu sob os sucessores de Mérovée. Não foi a cultura bárbara freqüentemente imaginada. Pelo contrário, merece ser comparado, em muitos aspectos, com a grande civilização de Bizâncio. Até mesmo a literatura secular era encorajada, tendo sido mais amplamente difundida do que seria nas duas dinastias e nos quinhentos anos subseqüentes. Esta literatura se estendia aos governantes - um fato surpreendente, dado o caráter rude e iletrado dos últimos monarcas medievais. O rei Chilperic, por exemplo, que reinou durante o século VI, não só construiu amplos anfiteatros de estilo romano em Paris e em Soissons, como também foi um poeta dedicado e exemplar, orgulhoso de sua arte. Narrativas literais de suas discussões com autoridades eclesiásticas refletem sutileza, sofisticação e aprendizado extraordinários, qualidades que dificilmente seriam associadas a um rei da época. Em muitas dessas discussões, Chilperic se revelava mais do que igual a seus interlocutores clericais.
Sob o reino dos merovíngios, os francos eram freqüentemente brutais.
Mas não eram, na realidade, um povo guerreiro por natureza ou por disposição. Não eram como osvikings, vândalos, visigodos ou hunos.
Suas atividades principais eram a agricultura e o comércio. Muita atenção davam ao comércio marítimo, especialmente no Mediterrâneo. E os artefatos da época dos merovíngios refletem um trabalho de alta qualidade, como comprova o tesouro do navio Sutton Hoo.
A riqueza acumulada pelos reis merovíngios foi enorme, mesmo para os padrões de épocas ulteriores. Muito de sua riqueza consistia em moedas de ouro de soberba qualidade, produzidas por casas reais localizadas em alguns locais importantes, incluindo o que é hoje Sinai, na Suíça. Espécimes de tais moedas foram encontradas no tesouro do navio Sutton Hoo e podem ser vistas hoje no Museu Britânico. Muitas dessas moedas portam uma cruz de braços iguais, idêntica àquela posteriormente adotada durante as Cruzadas pelo reino franco de Jerusalém.