quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O Paraíso Terrestre (parte 01)

Jardim do Éden nos primórdios da humanidade.

Era uma vez, na aurora dos tempos, um reino de maravilhas incalculáveis, repleto de árvores frutíferas e animais graciosos, onde o solo era fértil e os lagos, puros e cristalinos. Nesse lugar, em meio as grutas e cachoeiras, Adão, o primeiro homem, vivia feliz com sua esposa, Eva, sob a proteção direta do pai, a quem chamavam ''Senhor''.
O Jardim do Éden era um oásis de inesgotáveis recursos, situado na confluência dos Rios Tigre e Eufrates, a sudeste da Mesopotâmia. Quem de suas fontes bebia se tornava imortal, e fora nessas condições que Adão por séculos habitara em tais matas, sem conhecer a dor e o medo, o sofrimento e a morte.
O jardim tinha sete portões e quatro rios, que o cortavam de leste a oeste e de norte a sul, irrigando os campos de forma abundante, atenuando o calor, semeando flores de beleza ancestral, germinando bosques muito verdes e copiosos. Dentro desse refúgio, os dias seguiam uma nobre rotina. e. enquanto Eva coletava raízes, o primeiro homem caçava.
Certa tarde, Adão notou uma gazela que saltitava e deu uma volta numa gigantesca figueira. Ergueu o corpo, afastou o cabelo, esperou o momento propício e atirou sua lança. O animal caiu as margens de um riacho, o pescoço sangrando, os olhos embaçados. O ferimento era grave, então ele correu sobre a relva, agarrou uma pedra e se preparou para deslanchar o golpe de misericórdia, quando percebeu que acertara uma fêmea, o ventre dilatado, as mamas duras, cheias de leite.
Deteve-se. O braço tremeu e ele sentiu uma angústia profunda, pensando nas crias que nunca nasceriam, que não gozariam o contato com a mãe. Sendo assim, o consternado Adão se ajoelhou e chorou, desejando que nunca tivesse partido naquela aventura, e foi então que um ser se materializou a seu lado. A figura, inicialmente translúcida, aos poucos se condensou numa entidade física, muito parecida com um homem comum, de meia-idade, a barba crespa, a calvície formando entradas na testa, o corpo robusto, os pelos grossos.
Das costas nascia um par de asas cor de areia, e sua expressão ora era terna, ora severa, como de fato deveria ser a atitude de um pai. Porque chora Adão? -- trovejou o Senhor, as asas se espichando, os pés descalços roçando na grama. -- Oh, pai. Fui cego e estúpido. Não enxerguei que esta presa gestava e agora a condenei, assim como toda a sua linhagem. Como posso privar qualquer um, seja homem, planta ou animal, de experimentar as riquezas do Éden?
Não se entristeça -- tranquilizou-o o ente barbudo. Pois saiba, meu discípulo, que fui eu quem o confundi. Como? -- O rapaz se levantou. Enxugou as lágrimas com o dorso da mão, engoliu a saliva em excesso. -- Porquê?
Estou sempre a testá-los. É essa a minha função. Ofusquei sua vista de propósito, para observar o que faria a seguir e como agiria em face do dilema. Mesmo faminto, você se recusou a esmagar o pobre animal. Por quê?
Porque o que fiz foi errado, minha alma me diz que é errado. Sua alma lhe serve a contento. Portanto, escute-me agora. Bem e mal não são simplesmente pontos de vista, mas existem perante o universo. Certo e errado são leis ecumênicas, forças superiores a você, superiores a mim, inclusive, e que devem ser respeitadas.
Dito isso, o Senhor se aproximou do bicho e como por mágica o ferimento sarou, todo o sangue se esvaiu, até que a gazela voltou a andar. -- Eis mais uma de minhas diretrizes, mas um de meus mandamentos. Não se esqueça dele. Zele para que a terra perpetue seus frutos, preserve as sementes comestíveis e nunca, jamais tire a vida de uma fêmea em gestação. Essas regras são minhas e, como meu herdeiro, serão suas também.
Como um aluno obediente, o homem concordou, alegre por testemunhar a façanha. Naquele dia, Adão guardou a lança, retornou a sua cabana e deitou-se com Eva. Os dois comeram juntos, degustando raízes, e contemplaram o poente.
A sombra da mesma figueira, o Senhor observou Adão se afastando. No interior daquele santuário, onde tudo era inocente e sagrado, o tecido da realidade, a cortina mística que separa os planos físico e espiritual, afinara-se a tal ponto que nem os anjos, criaturas de substância puramente celeste, encontravam problemas para se manifestar em suas formas verdadeiras, conjurando suas armas, armaduras e asas.

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