O relato a seguir aconteceu há mais de cem mil anos, quando a casta dos ishins foi ordenada a destruição da espécie humana. O mundo era então coberto por uma extensa crosta polar, os mares se haviam endurecido, o céu se fechara numa só nuvem de escuridão e granizo.
Por todo esse tempo, nos campos brancos ao norte da África, a Deusa que Arde meditava, envolta no manto escaldante do lótus. Faltava pouco para que o mortais perecessem, para que toda humanidade sucumbisse, e a Centelha Divina era, então, a única salvaguarda dos pobres terrenos, era a chama que aquecia seus lares, a luz que penetrava na noite, o sopor que lhes esquentava a caça.
Com os braços apoiados sobre os joelhos, as costas eretas, a Deusa que Arde desafiava o poder dos arcanjos, que enviaram um de seus arcontes para destroná-la. Confiante em sua tarefa, Andril, o Anjo Branco, ou o Deus Branco, como também era chamado, materializou-se diante da ruiva. Deu um passo na direção da flor e a encarou seriamente, imaginando os louros da batalha, a consagração estaria por vir.
Mas a Deusa que Arde não se moveu, não prestando nenhuma atenção a sua chegada, atitude que o deixou furioso. Focalizando toda a energia em suas divindades, ele a cercou com uma névoa de densidade profunda, criando um casulo de gelo que apagou as pétalas em brasa, resfriando-lhe o corpo, tornando-a mais humana, quase mortal, com as madeixas escorridas sobre os ombros, as sardas agora mais vividas pontilhando o nariz.
-- Desprezzou-me anteriormente, Centelha. -- O arconte não esquecia seus votos. -- E no entanto aqui estou eu, pronto a cobrar minha vingança, avançou um metro contra ela. -- Será morta por congelamento -- e continuou falando, a medida que caminhava. -- Esmagarei sua ousadia, acabarei com sua arrogância -- os olhos piscavam de tanta ira. -- Conheça a mais formidável das minhas técnicas e saiba que foi por meio dela que a venci. -- Estendeu o braço para tocá-la, quando enfim a ruiva se ergueu. -- Peço que não faça isso -- a voz era um sussurro, porque fazia séculos que ela não falava. -- Suas habilidades tem pouca serventia neste lugar.
Dessa vez, foi o Anjo Branco que não lhe deu ouvidos, tão certo estava de sua conquista. Segurou-a pelo queixo, mas ao encostar nela algo inesperado ocorreu. Súbito, a aura da Deusa que Arde cresceu, dilatou-se num orbe de magma. O globo se alastrou em uma indescritível detonação colorida, uma mescla de fogo, lascas de gelo, jatos de água e lufadas de vento, que foi aumentando até se condensar numa descomunal redoma de plasma.
O estouro jogou Andril para longe, através das planícies, crestou os seus dedos, cegou-lhe a retina, derreteu toda a neve no entorno, revelou o chão de terra, os tufos de relva, as pequenas folhas que nasciam entre as pedras. Depois, o poder radiante subiu numa coluna, trespassou as nuvens para além dos espaço, reaquecendo os gases da atmosfera, tirando da órbita o astro moldado pelo Deus Branco, o satélite que obstruía os raios do sol.
Quando a explosão assentou, a entidade de mechas rubras inspirou o ar. O ar puro. O ar da primavera. O oxigênio das plantas. O cheiro das flores. Orquídeas. Camélias. Rosas. Girassóis. Grãos de pólen. Gramados verdejantes. Sob os galhos das árvores, um passarinho cantou. Um canário. Penas azuis. De onde ele viera? Como resistira? O mundo estava acordando. O planeta estava respondendo, estava vivo.
Cada canto da terra celebrava. Comemorava o fim do inverno. Os esquilos saíram das tocas. Insetos zumbiram. O orvalhos escorreu pelos sulcos nos troncos. Pequenas abelhas logo construíram seus favos. Os rios correriam de novo.
Perto dali, Andril jazia no solo, o corpo queimado, o rosto em carne viva, os ossos a mostra, a túnica colada a pele, derrotado por sua própria malícia.
O poder da vida, era algo tão lindo, tão precioso, um tesouro a ser preservado, não destruído. O firmamento se abriu. O sol renasceu. Assim terminou o penúltimo cataclismo enviado pelos arcanjos para exterminar a raça humana, a Era Glacial. Penúltimo cataclismo porque o último foi o Dilúvio.
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