domingo, 9 de outubro de 2016

O Fruto Proibido

Mesopotâmia, em um passado remoto.

Após a visita de Samael, Metraton tomou a decisão de selar seus domínios, estabelecendo que nenhum dos celestes, a exceção dele próprio, poderia cruzar os sete portões. Mas Samael era teimoso e pediu a seu amo, Lúcifer, que lhe ensinasse a arte da transmutação. Disfarçado então de serpente, ele se esgueirou por baixo das grades que cercavam o jardim e conseguiu penetrá-lo.
Rastejou por dois dias através dos rincões até encontrar uma macieira robusta, carregada de pomos vermelhos, e se enroscou confortavelmente em seu tronco. Pendurado em um dos galhos o anjo esperou, aguardou com a maior paciência. Numa tarde, avistou uma moça desnuda, correndo feliz sobre os campos floridos. Os raios solares desciam enviesados quando a jovem Eva se deparou com a macieira em questão, ela coletava víveres para o jantar e nunca contemplara iguarias tão frescas, aparentemente tão suculentas.
Mas, ao se aproximar do terreno, notou que o canto das aves cessara. Ora, os bichos não sabiam que a serpente era Samael travestido, mas uma cobra é ainda assim um animal perigoso. Eva também farejou a ameaça, sentiu o alerta do coração, mas as maçãs lhe pareciam tão belas que julgou que valia a pena correr o risco.
Uma nuvem cinzenta os encobriu no instante que Eva se adiantou. Curiosa, ela olhou para o réptil, um ser que até então desconhecia, já que Metraton não deixava entrar predadores naquele extremo do Éden. Depois se retraiu, temerosa. Não se assunte, ó filha dos homens -- disse a criatura numa voz sibilante.
-- Chegue mais perto e tome esta maçã como presente.
Quem é você? ela perguntou desconfiada quanto maravilhada. O animal era diferente de todos os outros. Suas escamas coriscavam ao reflexo da luz, passando do castanho ao dourado conforme o movimento da cauda. -- Qual é o seu nome?
-- Sou um anjo -- respondeu a víbora. E o meu nome é Samael.
-- Um anjo? -- O que é um anjo?
Um mensageiro. Um emissário de Deus.
-- Quem é Deus?
-- Seu pai nunca lhe contou? -- Não.
Ah, então não serei eu a contar, o serafim jogou a isca, e a moça a fisgou. O que mais o alegrava era corromper as pessoas, e Eva era a inocência encarnada. 
Nós, os anjos, somos entidades místicas, dotadas de poderes extraordinários. Somos os regentes do céu e da terra, dos animais e dos homens. Neste ponto, a jovem estava completamente seduzida. Ela sentia o apetite crescer, não pelas maçãs, é claro, mas por alguma coisa que anos mais tarde chamaria de ''conhecimento''.
-- Não é Adão o primeiro homem, e eu a única mulher?
Se assim fosse, de onde você teria nascido? -- A cobra gargalhou, e Eva experimentou a vergonha pela primeira vez. Existem outros homens e outras mulheres no exterior do jardim, bem como belezas naturais infinitas. A oeste há um lago tão extenso que não se pode enxergar o fim, e ao sul a paisagem termina em morros altíssimos, muito maiores que duzentas árvores sobrepostas.
Se existem mais como nós, porque o meu pai não nos disse? -- A moça tomou as palavras como insulto, mas não conseguia se desvencilhar, não conseguia ir embora e deixar a cobra falando sozinha. -- Não acredito em você, criatura rastejante.
Ó criança, há quanto tempo o senhor a tem enganado? Pois nem mesmo neste santuário você foi a primeira. Houve antes outra mulher, uma que se deitou com Adão, fez amor com ele e depois se esvaiu. Pergunte a seu pai sobre Lilith. Não se esqueça do nome. Mas não culpe o seu pobre marido, pois ele não se recorda dos fatos. Foi o Senhor que lhe apagou a memória. Porque o Senhor os quer manter presos e confinados, como formigas na palma da mão.
-- O tom ficou mais agressivo, não contra ela, mas a favor dela, acusando Metraton. -- Para privá-los da liberdade.
A liberdade é a capacidade de escolher o próprio destino, ter a chance de escolher o próprio destino, ter a chance de decidir entre o bem e o mal antes que a morte os alcance, pois já vira animais sendo caçados, mas nunca pensara que conceitos como finitude, esquecimento e ausência, bem e mal, antes que a morte os alcance. 
Morte? – Eva tinha uma vaga noção do que era a morte, pois já vira animais sendo caçados, mas nunca pensara que conceitos como finitude, esquecimento e ausência se aplicariam a ela algum dia. O que é a morte? O que ela representa para mim? 
Separação deste mundo. A cobra assumiu um tom sério, e Eva reparou que suas lições eram mais envolventes que as do Senhor. Metraton não dialogava com eles, apenas lhes ditava normas. 
O seu pai construiu este refúgio para torna-los imortais, mas ao preço da castração, fazendo estéreis e dóceis, obedientes e inférteis, e por consequência privando-os do amor verdadeiro. 
O que é amor verdadeiro? É o amor instintivo. A cobra a fitou com aqueles perturbadores olhos redondos. 
Por que as gazelas, as andorinhas e até os peixes podem procriar, e vocês não? – Samael perguntou, numa oratória impecável. É por meio dos descendentes que a raça humana propaga o legado, é através deles que se torna imortal. Se insistirem em ficar no jardim, estarão livres do sofrimento e da dor, mas nunca saberão como é o mundo lá fora e jamais conhecerão o amor soberano. Pois, acredite, jovem Eva: é na dificuldade, e não na alegria, que a ternura aparece, as relações são testadas e os laços se fortalecem. O jardim é um ilusão. O jardim é o útero, e o Senhor, seu cordão. 
Eva sentiu vontade de chorar, gritar, fugir, mas se calou. O que pensariam dela? O que diriam os cervos e os pássaros, e como a julgaria a serpente? Seria real o que acabara de ouvir? E se ela não fosse única, e se tivesse existido mesmo a tal Lilith? 
A jovem Eva se mostrou vulnerável, e foi então que o serafim efetuou a sua manobra. Como sairemos do jardim, se o Senhor nos vigia? Samael respondeu: “Isso eu não posso dizer. Terão que descobrir por si mesmos’’. E quando Eva insistiu, ele pegou uma maçã com a boca e lhe entregou. Converse com o seu marido. Só converse. E leve para ele este fruto. 
Uma vez semeada a discórdia, Samael resolveu desaparecer do jardim, antes que alguém o desmascarasse. Desceu da árvore em completo silêncio, rastejou na direção sul e se escondeu numa toca por duas semanas. Quando o inverno ia chegando, deslizou sobre a grama, cavou um túnel com o nariz e escapou do paraíso terrestre. 
Para além do oásis, o cenário revelou-se escaldante. Não havia muita coisa a não ser areia, poeira e fragmentos calcários. Samael julgou estar salvo. Faltava-lhe somente retornar aos Sete Céus e dar a seu mestre a grande notícia como corrompera o primeiro casal. Mas ele acabara de avançar pelos ermos quando teve seu disfarce anulado por uma energia superior. 
De repente, não era mais uma cobra, era o anjo de sempre, a pele morena, as asas douradas, o cavanhaque oleoso. Pego em flagrante, tinha os cotovelos abertos, o abdome colado na terra. Então, ao erguer o queixo um centímetro, descobriu quem o espiava, e não era ninguém menos que Metraton. 
Samael deu um sorriso acanhado e fez menção de se ajoelhar, mas o sentinela não deixou. “Fique no chão, onde é o seu lugar”. Com o calcanhar, o Rei dos Homens pisou-lhe a nuca, quase o esmagando contra o solo. Samael tentou gritar. Não conseguiu. Ele tentou se justificar, como normalmente agem os covardes, dizendo: “Foi o meu amo, Lúcifer, quem me enviou a Haled com a missão preparada. Só cumpro ordens”. Metraton ergueu o invasor pelo pescoço e disse: “Sim, eu sei. É por isso que eu vou mandar para ele um recado”. 
Ditas essas palavras, o líder dos sentinelas atirou sua vítima através da planície. O corpo rolou uns duzentos metros até estacionar sob um pedaço de rocha. No momento seguinte, intensificou o castigo, virando-o novamente de bruços. Samael tinha consciência do que o sentinela planejava, sabia quanto sofreria, e não viu saída a não ser suplicar. 
Pediu piedade e clemência. “Misericórdia. Perdoe este pobre celeste. Perdoe-me por tê-lo desacatado”. Metraton então respondeu: “Samael, você já deveria saber: eu não sou do tipo que perdoa”. Embora implacável, o guardião do jardim não tinha nem nunca tivera uma personalidade maléfica e no fundo não queria provocar dano a ninguém, mas o crime exigia uma punição exemplar, ou a mensagem não seria transmitida a contento. 
Metraton então deu início ao massacre. Com as duas mãos, agarrou-lhe a asa direita e com um simples puxão a arrancou de seu dorso. O ataque foi seco, recheado de crueldade, e dilacerou ao mesmo tempo os ossos, o tecido e a carne, tão rápido que o sangue só esguichou um segundo depois. Samael se contorceu e emitiu um uivo esganiçado, que ecoou de norte a sul da Mesopotâmia, das montanhas de Zagros ao vale do rio Eufrates, das margens do Tigre as praias do golfo Pérsico. 
O solo bebia então litros de sangue, deixando claro que o serafim não suportaria um novo estirão. Como não queria e não podia mata-lo, em vez de ensaiar outro choque, Metraton torceu-lhe a segunda asa, partindo-a como quem tritura um graveto. Depois, girou-lhe os tendões em movimentos de rosca, até que os nervos descolaram, sobrando apenas uma ponta branca onde outrora se projetava o apêndice. 
Com dois avantajados rasgos nas costas, através dos quais se enxergavam os pulmões, o elegante Samael era agora uma pasta escarlate, de pernas trêmulas e feições deformadas. O Rei dos Homens tornou a rodá-lo, dessa vez de cabeça para cima, e com um tapa o despertou. 
“Envio-o de volta aos Sete Céus, ó serpente da desgraça. Diga a Estrela da Manhã que sou eu quem manda no Éden, e que ele nunca mais despache seus anjos para seduzir os meus filhos”. Samel então garantiu que ele não mais o faria, pois isso não seria mais necessário. Sorriu pelo canto da boca, sabendo afinal quem vencera a disputa. “Não será mais necessário”.

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